Setor da construção terá de aprender a especificar desempenho acústico nas edificações

“Não podemos continuar ignorando a caracterização de produtos e sistemas, pois para atingir o desempenho previsto na NBR 15.575 é preciso usar dados. O setor precisa ser capaz de se organizar em torno de suas entidades e realizar essas caracterizações, a fim de disponibilizar dados confiáveis aos profissionais que projetam e constroem”. Conheça na integra a entrevista com a Eng. Maria Angélica Covelo, da empresa Núcleo de Gestão e Inovação (NGI).

Engenheira civil Maria Angélica Covelo Silva


Foto: Empresa CimentoItambé

A engenheira civil Maria Angélica Covelo Silva, graduada pela Universidade Estadual de Londrina (PR), é mestre pela Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutora pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Iniciou a carreira em uma empresa construtora e, posteriormente, dedicou-se à carreira de professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina e no Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT). Foi sócia-fundadora do CTE – Centro de Tecnologia de Edificações, consultoria sediada em São Paulo, onde permaneceu até 1998, quando criou o Núcleo de Gestão e Inovação (NGI), sua empresa de consultoria.

Autora de mais de 100 artigos técnicos publicados em publicações especializadas em engenharia e construção, no Brasil e no exterior, também possui livros publicados, dentre eles “Sistema de gestão da qualidade para empresas construtoras” e “Gestão da qualidade no processo de projeto de edificações”. Considerada a “mãe” da Norma de Desempenho, por incansável contribuição, Maria Angélica participou de sua elaboração e revisão, e é uma das grandes defensoras da cultura da caracterização do desempenho de materiais e componentes. “Antes da Norma de Desempenho tínhamos as normas de especificações. Mas os profissionais da área não sabem especificar as características, exigir ensaios e interpretar o desempenho dos produtos, em função dos resultados atingidos. É como se tivéssemos médicos que não sabem quais exames devem pedir aos pacientes, de acordo com seus sintomas, e nem interpretar e analisar resultados destes exames”, declara ela. Leia nesta edição a entrevista completa com Maria Angélica e as questões que o setor de construção terá de enfrentar para “aprender” a especificar desempenho acústico nas edificações.

A Norma de Desempenho já está em pleno vigor. O mercado (projetistas, fornecedores e construtoras) está preparado para atender às exigências em termos de acústica? Quais são as principais mudanças relativas à
acústica?

Podemos efetivamente dizer que a grande mudança é que havia um desconhecimento sobre acústica no setor da construção civil. Com exceção dos empreendimentos de natureza comercial, ou outras e de alto padrão residencial, simplesmente se ignorava que já haviam as normas que definiam os níveis internos admissíveis de ruído segundo o tipo de atividade.

Por outro lado, com a racionalização de custos nos anos 1990 e primeira década dos anos 2000 houve uma redução das “massas” em paredes, lajes e pisos, além do uso de esquadrias e portas que não tinham qualquer requisito de desempenho acústico. Isso levou a um aumento da insatisfação dos usuários, o que fez com que este item fosse o maior foco da divulgação da norma pela mídia não especializada. O mercado ainda não está preparado para atender às exigências de acústica por uma razão mais básica do que a disponibilidade de produtos: o desconhecimento sobre como atingir o requisito, sobre como especificar, e sobre o comportamento dos sistemas que utilizamos atualmente.

Na sua visão, o que ficou faltando e o que pode melhorar na NBR 15575 em relação aos requisitos de conforto acústico?

É preciso amarrar melhor o enquadramento do empreendimento nas classes I, II ou III, o que espero ocorrer com a revisão da NBR 10151, pois essa classificação ainda está subjetiva. Também precisávamos ter no anexo a orientação de como calcular com o Rw da janela e com o Rw da esquadria, o que se atinge em campo para as características da parede utilizada na fachada e a mesma coisa para o conjunto porta + parede, tendo a caracterização de ambas de como se chegar aos 40 dB mínimos exigidos pela norma. Ninguém no mercado sabe como chegar a isso em projeto. E os fabricantes de esquadrias e de portas não se deram conta ainda de que precisam criar material instrucional para esclarecer essa questão.

Qual a importância da comprovação, por meio de ensaios, do desempenho de materiais e produtos de acústica? Como o setor deve se organizar e o que os fabricantes devem fazer para caracterizar seus produtos e sistemas?

O Brasil não tem cultura de caracterizar o desempenho de materiais e componentes de construção. Antes da Norma de Desempenho, tínhamos as normas de especificações de blocos, esquadrias, portas, etc., e os profissionais de arquitetura e engenharia não sabiam especificar as características destas normas, exigir os ensaios e interpretar o desempenho dos produtos em função dos resultados atingidos. É como ter médicos que não sabem quais exames devem pedir aos pacientes, segundo seus sintomas, e nem interpretar e analisar os resultados destes exames.

Mas não se pode continuar assim, pois para atingir o desempenho previsto na NBR 15575 é preciso usar dados de características dos sistemas. O setor precisa ser capaz de se organizar em torno das entidades que representam cada categoria de sistemas e realizar estas caracterizações de forma setorial, a fim de disponibilizar dados aos profissionais que projetam e constroem.

Como isso poderia ser feito?

Paredes | fabricantes de blocos de concreto, de cerâmica, de gesso (que se usa em paredes internas no Nordeste) precisam ensaiar todas as paredes típicas usadas para as situações previstas na norma e disponibilizar estes dados de laboratório e de campo, ensinando como usá-los em projeto. São as respectivas associações que devem fazer isso de forma setorial, com blocos que estejam em conformidade com suas respectivas normas.

Portas | os fabricantes precisam estabelecer classes de desempenho acústico, dizer qual a condição para atingir aquilo (uma porta que tenha Rw=20dB atinge isso instalada como?), e como calcular o resultado do conjunto com a parede de geminação que é o que a norma pede, e que vai depender de cada tipo de parede utilizada. Uma coisa é uma porta de 20dB com uma parede de 40 dB, e outra coisa é uma porta de 20dB com uma parede de 45 ou 48 dB.

Esquadrias | o problema é mais complicado neste caso. Esquadrias padronizadas precisam ter as classes e sabemos que com aqueles vãos padronizados o desempenho será sempre o mesmo. Portanto, nesse caso é o fabricante que fez o projeto, que montou a esquadria e que a instala nas obras. No caso de esquadrias não padronizadas o projeto muitas vezes é de um consultor contratado pela construtora, que não entra no mérito do desempenho acústico, mas apenas do atendimento à NBR 10821 que trata das condições de estanqueidade, esforços mecânicos, etc. Nesse caso, o fabricante do perfil não é responsável pelo desempenho pois não fez o projeto. A construtora precisa ensaiar o protótipo para conhecer o desempenho da sua esquadria, que é customizada. Quando a construtora usa vãos padronizados e o projeto do sistemista, esse deve caracterizar por meio do ensaio. Mas em todos os casos é preciso saber estimar qual o resultado esperado em campo, a partir dos resultados de laboratório, pois em projeto é preciso tomar decisões.

É necessário, portanto, realizar mais ensaios e conhecer com mais representatividade os diversos fatores que influenciam, ou não, o desempenho da esquadria, como, por exemplo, se o perfil preenchido? É um trabalho enorme na obra e precisamos de mais ensaios para ver se é esse mesmo o caminho para o desempenho superior, ou é o projeto de vedação da esquadria, o vidro, etc.

Pisos | os ensaios que tenho acompanhado mostram que se subestimou o conhecimento necessário para isso. Não é só a espessura da laje que determina o desempenho, mas o tamanho do vão, a forma como essa laje está apoiada na estrutura, a deformabilidade da estrutura, e os materiais componentes do sistema de piso entregue pela construtora. Em face dessas variáveis, não há ainda um modelo confiável para estimar isso na fase de projeto. Os ensaios estão sendo feitos caso a caso, sem um esforço setorial para conhecer comportamento dos vários sistemas usados no país. Conseguimos fazer um esforço conjunto no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, com mais de 20 ensaios realizados com diferentes sistemas e os resultados mostraram claramente a necessidade de aprofundar o conhecimento, além da inadequação de alguns sistemas utilizados.

Ao adotar procedimentos para obter os níveis exigidos de conforto acústico, as construtoras tendem a aumentar o valor do imóvel?

Até agora, pelo que vimos os impactos para atender os requisitos mínimos são: em paredes de geminação quando a exigência é 45 dB, determinadas empresas precisarão ter paredes mais espessas do que as utilizadas atualmente; em portas entre unidades usam-se produtos muito frágeis, que não atendem sequer a classe mínima de esforços mecânicos previstos na NBR 15930, então terão que melhorar;  em esquadrias, há empresas que atendem os requisitos mínimos, mas outras não atendem nem a Classe I de ruído; em pisos, existem muitas empresas que estão atendendo ao mínimo, mas, outras, usam lajes de pequena espessura (abaixo de 10 cm) e/ou sistemas de lajes que não atendem nem ao desempenho mínimo. Por isso, o nível de ajuste de custos irá variar muito, dependendo de cada caso.

O ruído de impacto nas lajes em edifícios multiandares, uma das principais queixas dos consumidores, será resolvido com a norma? O contrapiso flutuante é uma boa solução? Quais os cuidados para que seja eficiente?

O nível mínimo de 80 dB não vai resolver as queixas dos consumidores. Neste momento, o mínimo é apenas uma linha de corte, que vai aos poucos eliminar do mercado soluções de sistemas de pisos (lajes + contrapiso + revestimento) que não proporcionam este mínimo. Ainda temos reclamações de clientes em lajes que atendem ao requisito mínimo. Será preciso evoluir. Ao mesmo tempo, os contrapisos flutuantes têm apresentado bons resultados. Precisam ser executados com procedimentos totalmente padronizados para serem mesmo flutuantes, impedindo o contato do impacto com as paredes e estrutura.

Mas para as obras que retiraram o contrapiso das práticas construtivas, como em São Paulo, há uma descontinuidade no processo produtivo. Precisamos de inovações que incorporem a solução acústica à laje a fim de reduzir esta descontinuidade. Ou seja, há campo para pesquisa e desenvolvimento neste tema.

São satisfatórios os parâmetros da NBR 15575 exigidos quanto aos níveis de isolamento acústico das divisórias e esquadrias?

Para a realidade brasileira atual, que não dispunha de nenhum parâmetro, pode-se dizer que sim. Não se pode começar uma norma que introduz uma mudança deste tipo no patamar mais alto, por mais que este mais alto possa ser o mais correto tecnicamente. É necessário mudar toda uma cultura da arquitetura, da engenharia, da indústria e do mercado de construção civil.

E os parâmetros para o isolamento das máquinas de elevadores, do sistema de ar condicionado, de motor gerador, e aquecedor de piscina, entre outros?

Acredito que é preciso ensinar o mercado a usar estes parâmetros para projetar o isolamento que desses equipamentos. Deverá haver um processo de “aculturamento” dos projetistas de arquitetura e de instalações para posicionar adequadamente estes equipamentos nos limites da norma.

Como deverão ser realizadas as medições de ruído antes e depois da implantação do empreendimento? É importante fazer um levantamento do ruído ambiental, determinando as principais fontes existentes na área do empreendimento?

Não podemos raciocinar assim. Uma norma técnica brasileira tem aplicação nacional. Tenho circulado o Brasil inteiro e temos localidades até mesmo capitais de estado onde não há sequer um profissional especializado para fazer tais avaliações. Temos é que ensinar quem concebe os empreendimentos a projetá-los de forma a evitar as situações que causem pontos críticos. O ruído ambiental não pode ser responsabilidade do empreendedor, e si m do Poder Público. Precisamos abrir a discussão com as prefeituras, com o Ministério das Cidades, de promover o mapeamento acústico das cidades, a fim de que os empreendedores do mercado imobiliário possam partir desses dados, como acontece em muitos países.

O que deve ser levado em consideração no dimensionamento acústico das vedações verticais internas e externas, dimensionamento dos sistemas de pisos, coberturas etc.?

Os fatores que determinam o desempenho acústico em cada situação precisam ser conhecidos de projetistas de arquitetura e de estruturas. Hoje, os projetistas não sabem como suas decisões determinam o desempenho acústico. Por exemplo, os colegas profissionais de projeto de estruturas sempre determinaram vãos e espessuras, deformações admissíveis, etc., com base no desempenho estrutural. Mas esses parâmetros estruturais não são necessariamente adequados do ponto de vista do desempenho acústico.

Pode-se afirmar que a qualidade de vida dos moradores será alterada devido às exigências de desempenho acústico? Quais serão os benefícios da norma em relação ao conforto acústico?

Acho que, por enquanto, vamos só tratar dos absurdos. Hoje, as pessoas dão depoimentos em que demonstram participar integralmente da vida de seus vizinhos, pois há alta inteligibilidade do som entre um apartamento e outro, seja para cima, para baixo e para os lados. Tirando os absurdos já é um avanço. Mas precisamos buscar inovação para ter soluções acústicas cada vez mais acessíveis a todos os padrões de empreendimentos.

Há previsão de que população das cidades deverá dobrar nos próximos trinta anos. Diante de um ambiente mais complexo em relação a ruídos, haverá um aumento das exigências de conforto acústico?

Os países que têm leis sobre desempenho acústico o fazem porque encaram isso como uma questão de saúde pública. Há dois anos, convidamos a professora doutora Alessandra Samelli, da Escola de Medicina da USP, para nos mostrar os efeitos dos ruídos na saúde humana, durante evento que coordenei no Secovi-SP. Vimos com clareza todos esses efeitos. Precisamos encarar o problema com todas estas facetas. Mas, insisto em dizer: as edificações precisam evoluir muito, com tecnologia acessível a todos os padrões de empreendimentos, assim como evoluíram os automóveis 1.0 da década de 1990 para hoje, em termos de desempenho. Mas é preciso que o Poder Público assuma o seu papel na regulação, fiscalização e tecnologia para a acústica urbana. Nos países desenvolvidos não se pensa em construir uma nova via sem proteger acusticamente as edificações próximas, enquanto que no Brasil, ao contrário, se constrói sem a menor responsabilidade e o poder público nada diz sobre isso, nem mesmo nas edificações construídas por ele em locais muito ruidosos. Precisamos de todo um movimento técnico e político nesse sentido.

Por favor, descreva um breve histórico sobre o processo que levou à edição da Norma de Desempenho no Brasil.

Nos anos 1990, a Caixa Econômica Federal não conseguia aceitar sistemas inovadores para empreendimentos que financiava, por falta de mecanismos de avaliação de desempenho. Começou a exigir trabalhos isolados dos setores como drywall, steel framing, alvenaria estrutural. Mas era preciso obter meios de avaliar qualquer sistema construtivo com os requisitos estabelecidos pela ISO 6241, em 1984, e pelo IPT no Brasil, ainda em 1981.

Assim, com esta motivação, surgiu o primeiro projeto para desenvolver a norma, no início dos anos 2000, com recursos da Caixa e da FINEP – Financiadora de Estudos e Projetos do Governo Federal e com o CB 2 – Comitê Brasileiro de Construção Civil da ABNT. Constituiu-se então a comissão de estudos coordenada, inicialmente, pelo engenheiro Ercio Thomaz, do IPT. A partir de 2004 o engenheiro Carlos Alberto de Moraes Borges, do Secovi-SP e SindusCon-SP, assumiu a tarefa e, em 2008, foi publicada a primeira versão da norma. Mas, às vésperas de entrar em vigor, em 2010, é que o mercado se debruçou mais detidamente sobre a norma, o que provocou o adiamento da sua exigibilidade e revisão, que foi conduzida por mais de um ano pelo engenheiro Fábio Villas Bôas, do SindusCon-SP. Finalmente, a norma foi publicada em 19 de fevereiro de 2013 e entrou em vigor em 19 de julho.