Audiência pública propõe ações contra poluição sonora em São Paulo e termina com compromisso legislativo
A audiência pública “Poluição Sonora em Debate”, realizada em 10 de novembro de 2025 na Câmara Municipal de São Paulo, encerrou com um conjunto de reivindicações e encaminhamentos que prometem transformar o debate em ações concretas. Promovida pela Comissão de Educação, Cultura e Esportes a pedido da vereadora Cris Monteiro, a sessão reuniu especialistas, representantes da sociedade civil e moradores para discutir os impactos do ruído urbano na saúde, no bem-estar e na convivência social.
Entre os participantes e especialistas, estavam o presidente da ProAcústica, Marcos Holtz; o representante da Frente Cidadã pela Despoluição Sonora, Marcelo Sando; o advogadoValdir Barbosa; a fonoaudióloga e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Dra. Ana Cláudia Fiorini, além derepresentantes da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente (SVMA); da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana (GCM); e membros de coletivos e associações de bairrode diversas regiões de São Paulo.

A vereadora Cris Monteiro abriu o encontro destacando que o barulho excessivo é uma forma de violência cotidiana que afeta diretamente a saúde mental e física da população. “Precisamos parar de tratar o som como algo secundário. Ele é central na experiência urbana e na dignidade das pessoas”, afirmou. Monteiro se comprometeu a apresentar um projeto de lei com base nas contribuições da audiência, voltado à revisão da legislação municipal sobre emissão sonora, fiscalização e planejamento urbano.
Marcos Holtz, trouxe uma abordagem técnica e estratégica para o debate sobre poluição sonora nas cidades. Dentro dessa questão, é possível identificar duas frentes distintas que precisam ser compreendidas separadamente: a fiscalização e o planejamento. Marcos Holtz afirma que “atuar apenas na fiscalização permite coibir excessos, mas perpetua os mesmos erros indefinidamente”, pois não há uma abordagem preventiva. Assim como ocorre em políticas de saúde pública, “é necessário pensar em estratégias de curto, médio e longo prazo. No curto prazo, a fiscalização deve atender às pessoas que sofrem hoje com o ruído – aquelas que não conseguem dormir e enfrentam problemas graves de saúde em decorrência da poluição sonora”.
O crescimento acelerado da construção civil em centros urbanos trouxe novos desafios. Segundo Holtz, “a cidade hoje é praticamente um canteiro de obras, e embora o desenvolvimento seja desejável, ele precisa ocorrer com respeito à população que vive, trabalha e descansa nas áreas afetadas. Já existe um decreto municipal que regula o funcionamento das obras, mas a capacidade de fiscalização é limitada. Com apenas cerca de 40 fiscais para uma metrópole como São Paulo, torna-se impossível atender à demanda crescente. Isso sobrecarrega os canais de segurança pública, transformando um problema de saúde coletiva em uma questão de segurança urbana”.

Para lidar com essa realidade, é essencial investir em soluções tecnológicas. Marcos Holtz defende que “é possível estruturar uma fiscalização mais inteligente, mais conectada e que funcione em tempo real, sem depender exclusivamente do deslocamento físico de equipes”. Segundo ele, já existem sistemas modernos de monitoramento remoto e avaliação à distância que podem ser aplicados especialmente na gestão de eventos. “Os locais e datas são conhecidos com antecedência, o que permite estabelecer acordos claros: o evento só acontece se respeitar os limites definidos. O uso de tecnologias como limitadores de som lacrados, já adotados em outros países, pode garantir que os acordos sejam cumpridos – e que o entretenimento ocorra sem comprometer o bem-estar da população”, concluiu.
Excesso de barulho e ausência de respostas
Marcelo Sando fez uma intervenção contundente e politicamente articulada sobre os impactos do ruído urbano e a omissão do poder público diante do problema. Como idealizador da Frente Cidadã pela Despoluição Sonora – um movimento formado por moradores de diversas regiões da cidade -, Sando trouxe à mesa a voz de comunidades que convivem diariamente com o excesso de barulho e a ausência de respostas efetivas.

O filósofo e morador da Avenida Paulista há mais de uma década, relatou como sua vivência pessoal o levou a se engajar na discussão sobre a poluição sonora. Ele explica que o programa Paulista Aberta, criado com o objetivo de promover uma cidade mais silenciosa e voltada ao convívio social, acabou gerando efeitos colaterais não previstos. “A ideia era convívio social e mais sadio, uma cidade menos barulhenta, mas com o tempo, o espaço passou a atrair bandas, eventos religiosos com amplificação e baterias universitárias, transformando o que era para ser um ambiente de descanso em um palco de ruído constante”. A Avenida Paulista, por sua configuração de ‘cânion urbano’, com prédios espelhados dos dois lados, intensifica a reverberação do som, criando uma experiência sonora caótica para os cerca de 6 mil moradores da região.
Segundo ele, o sofrimento desses moradores foi por muito tempo invisível. “As pessoas têm a sensação de que na Avenida Paulista não mora ninguém, é uma via puramente comercial”, o que gerou uma sensação de abandono e impotência. O som amplificado durante os eventos chega a níveis alarmantes – entre 75 e 100 decibéis nas fachadas dos prédios residenciais – configurando, segundo ele, uma “crise de saúde pública em um espaço aberto que é muito simbólico”. Para ele, a Avenida Paulista representa um microcosmo da cidade, um espaço de diversidade e convivência intensa, mas também de conflitos. Foi esse dilema que o motivou a fundar o movimento Paulista Boa para Todos, com o objetivo de buscar soluções para o convívio urbano equilibrado.
A partir dessa experiência, ele propõe uma reflexão mais ampla sobre o uso do espaço público. “Não é porque a rua é pública que posso fazer o que quiser nela. Exatamente por ser pública, é preciso negociar a convivência com todos os outros agentes.” Para ele, a crise de convivência atual exige um novo olhar sobre os limites entre liberdade de expressão e o direito à saúde. “Estamos vivendo uma crise onde as pessoas entendem que sua liberdade artística, política ou religiosa está acima de qualquer outra coisa. Mas há um limite, e esse limite é a saúde das pessoas que estão próximas.” Ele defende que o poder público precisa assumir um papel ativo na mediação desses conflitos, com novas normativas, revisão dos processos de licenciamento e fiscalização mais eficiente, reconhecendo o ruído como um problema urgente de saúde pública.
A Dra. Ana Cláudia Fiorini, pesquisadora reconhecida na área de saúde auditiva, Fiorini é uma das principais vozes no Brasil quando o assunto é o impacto do ruído na saúde pública. Em sua fala, ela destacou que a poluição sonora é um dos agentes ambientais mais negligenciados pelas políticas públicas, apesar de seus efeitos serem amplamente documentados pela literatura científica. “O ruído excessivo não é apenas incômodo – ele é patológico. Ele adoece, silenciosamente, milhões de pessoas todos os dias”, afirmou.

A médica apresentou dados de estudos nacionais e internacionais que associam a exposição prolongada ao ruído urbano com o aumento de casos de hipertensão, infarto, insônia, ansiedade, depressão e perda auditiva. Ela enfatizou que os efeitos são ainda mais graves em populações vulneráveis, como crianças, idosos e pessoas com transtornos neurológicos. “O barulho crônico compromete o desenvolvimento cognitivo infantil, prejudica o rendimento escolar e agrava quadros de demência em idosos”, alertou.
Fiorini também criticou a ausência do tema nas políticas de saúde preventiva e defendeu que a poluição sonora seja tratada como uma questão de saúde coletiva. “Precisamos de campanhas educativas, protocolos clínicos específicos e formação de profissionais da saúde para lidar com os efeitos do ruído. O silêncio é terapêutico e é um direito”, declarou. Ela encerrou com um apelo à sensibilidade dos legisladores: “Cuidar do som da cidade é cuidar da saúde das pessoas. O ruído não pode ser o preço do progresso.”
O advogado Dr. Valdir Barbosa trouxe uma contribuição decisiva ao debate. Autor do livro “Poluição Sonora e o Direito ao Silêncio”, Barbosa é uma das vozes mais respeitadas na defesa jurídica do sossego público e da regulação do ruído urbano.
Segundo ele, “hoje não se tem mais dúvida sobre o quanto o ruído prejudica o homem, o meio ambiente e os animais”. A Organização Mundial da Saúde já reconhece a poluição sonora como a segunda forma mais grave de poluição, atrás apenas da atmosférica. Estudos internacionais e nacionais comprovam de forma categórica os danos à saúde causados pela exposição contínua ao ruído. Ele relembra que, há três décadas, o tema era tratado como mero aborrecimento entre vizinhos, mas hoje, com evidências científicas robustas, não é mais necessário demonstrar a causalidade entre o ruído e o dano.


Apesar da gravidade do problema estar amplamente demonstrada, o jurista aponta que a legislação brasileira já oferece um arcabouço robusto para lidar com o tema. Ele cita o artigo 1.277 do Código Civil, que garante o direito de cessar interferências prejudiciais ao sossego, saúde e segurança; o artigo 42 da Lei de Contravenções Penais, que protege contra abusos sonoros; e o artigo 54 da Lei de Crimes Ambientais, que trata o ruído como poluição de caráter coletivo. “Temos leis suficientes, mas infelizmente, no dia a dia, não conseguimos efetivamente uma solução para a maior parte dos problemas.” A judicialização privada, embora ainda eficaz, é cara, demorada e inacessível para grande parte da população. Por isso, ele defende que o Estado assuma um papel mais ativo, reconhecendo o ruído como uma questão de saúde pública.
No último ponto de sua fala, o jurista propõe medidas concretas para enfrentar a sobrecarga das autoridades policiais diante da demanda crescente por atendimento de ocorrências relacionadas ao ruído. “O policial tem que tomar uma decisão filosófica de qual ocorrência poderá ser atendida, e naturalmente, prioriza os crimes mais graves.” Com base em dados do COPOM e da Polícia Militar, ele aponta que são registradas em média 118 ocorrências por dia, sendo 70% delas nos finais de semana. Para enfrentar esse cenário, sugere o fortalecimento da Guarda Civil Metropolitana, cuja competência para atuar no policiamento preventivo e ostensivo foi ampliada por decisão do Supremo Tribunal Federal. “Há necessidade de uma legislação mais específica, para que pudéssemos ter um tratamento especializado e mais acessível e menos burocrático.” E conclui com firmeza: “Multas. Isso, sim, é importante.”

O público presente teve participação ativa. Moradores da Vila Madalena, Pinheiros, Mooca, Bela Vista, Itaim e outras regiões relataram casos de insônia crônica, evasão escolar, conflitos entre vizinhos e até mudanças forçadas de residência devido ao barulho constante. As principais reivindicações incluíram fiscalização efetiva, especialmente à noite e nos fins de semana; revisão dos critérios de concessão de alvarás; canais de denúncia mais acessíveis e transparentes; proteção de áreas residenciais e zonas mistas; e o reconhecimento do direito ao silêncio como um direito humano e urbano. A audiência foi concluída com o compromisso da vereadora Cris Monteiro de consolidar as propostas em um projeto de lei participativo, construído com apoio técnico dos especialistas e escuta ativa da população. A gravação completa está disponível no canal da TV Câmara São Paulo no YouTube, e servirá como base para os próximos passos legislativos.