Em entrevista exclusiva, o arquiteto e pesquisador Francesco Alleta analisa os sons da cidade em novo documento da ONU

Nos últimos anos, em várias regiões do planeta, a comunidade acústica colecionou casos de sucesso no planejamento urbano de áreas silenciosas e na criação de paisagens sonoras (em inglês, soundscape design), permitindo à população acesso a espaços restaurativos e relaxantes, além da criação de espaços públicos repletos de significados.

Para discutir o tema atualíssimo da paisagem sonora, o ProAcústica News entrevistou Francesco Aletta, autor do capitulo “Escutar as cidades: de ambientes barulhentos para paisagens sonoras positivas” do recente documento “Fronteiras 2022: Barulho, Chamas e Descompasso” publicado pelo Pnud, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (ONU) para o meio ambiente. O artigo apresenta uma contribuição fundamental para a análise dos ruídos e preservação do ambiente que possa trazer efeitos positivos sobre a saúde e o bem-estar das comunidades do entorno.

Para discutir o tema atualíssimo da paisagem sonora, o ProAcústica News entrevistou Francesco Aletta, autor de um recente documento publicado pelo Pnud, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. O artigo apresenta uma contribuição fundamental para a análise dos ruídos ambientais e, mais do que isso, sobre a preservação do ambiente que possa trazer efeitos positivos sobre a saúde e o bem-estar das comunidades do entorno. Francesco Aletta nasceu em Nápoles, na Itália, e estudou arquitetura na Luigi Vanvitelli, conhecida como a Segunda Universidade de Nápoles, onde concluiu o pós-doutorado em design ambiental, em 2014. O termo “design ambiental” abrange uma multidisciplinaridade extensa que passa pela história da arquitetura, design de interiores, planejamento regional e urbano, paisagismo e planejamento ambiental, ciência da construção, geografia cultural e preservação do patrimônio, sem deixar de incluir as metodologias sociais. Aletta conta que chegou a trabalhar como arquiteto licenciado na Itália por alguns anos, mas, durante o doutorado, passou a se interessar pelas relações entre as pessoas e os sons cotidianos. Pouco tempo depois estava imerso na carreira de acústica ambiental. Em 2013, na Inglaterra, ingressou no grupo de acústica da escola de arquitetura da Universidade de Sheffield como pesquisador associado para trabalhar no projeto de metodologias da paisagem sonora da rede Sonorus. Foi para a Bélgica, voltou para a Itália e, desde 2018, trabalha na University College de Londres, no Instituto de Engenharia e Design Ambiental junto com o professor Jian Kang, referência na área de acústica ambiental.

O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e outras agências globais implementaram vários indicadores que permitem uma visão mais objetiva dos impactos como a poluição da água e do ar ou a destruição de florestas provocam na saúde do planeta. Na sua opinião, qual seriam as estratégias para transformar as informações em políticas reais ao redor do mundo?

Acho que o primeiro passo seria fazer com que os políticos ouvissem. Em todo mundo, me parece que há uma considerável sensibilização em torno da poluição, a qualidade do ar ou as mudanças climáticas. Mas quando chega no ruído, as pessoas não enxergam o impacto desse estresse ambiental com o mesmo peso que as outras coisas. Para atrair os legisladores e os políticos em torno da mesa de discussão, acho que ajudaria bastante trazer a conexão entre poluição sonora e a saúde para o centro do debate. Trazer relatórios técnicos publicados pela Organização Mundial da Saúde ou de agências regionais europeias que fazem a conexão real entre exposição ao ruído e, por exemplo, casos de morte prematura. Isso, de fato, faz a diferença. Nesse nível de exposição, os números mostram quantas milhares de pessoas são acometidas por morte prematura, por ano. Quando se apresenta esse número, os políticos começam a ouvir e enxergam o impacto. De alguma maneira, na Europa, acho que a percepção de que os ruídos são excessivos amadureceu. Ficou mais claro para as pessoas que o ruído tem um impacto negativo. Por outro lado, ocorre uma grande mudança na narrativa. Se você está exposto ao ruído pode ser que ocorra um efeito adverso, mas agora muitas agendas parecem estar dizendo que, se é possível introduzir sons positivos à paisagem sonora, pode-se minimizar os efeitos negativos da poluição sonora. Isso está presente como um dos enfoques do relatório da ONU sobre o meio ambiente em que, na primeira parte, há uma exposição sobre os perigos da exposição ao ruído e, na segunda, algumas ações sobre a paisagem sonora. Vários autores avançaram os conceitos de paisagem sonora no final da década de 60, nos anos 70, e nos dias atuais a ISO está criando parâmetros de normalização para paisagens sonoras. É um trabalho em desenvolvimento e tem participação de vários países, incluindo o Brasil.

A pandemia de Covid fez surgirem novas e inusitadas paisagens sonoras em todo o planeta, mas, ao mesmo tempo, trouxe impactos de peso na economia de países pobres e sociedades emergentes. Você tem algumas ideias a respeito de caminhos para conciliar a retomada de crescimento econômico sem agravar os níveis aceitáveis de poluição sonora?

Parece que existe um tipo de pressuposto, em relação às economias emergentes, de que o desenvolvimento e o crescimento econômico caminham, lado a lado, com a poluição sonora. Acho que o primordial, em nível político, seria separar essas duas coisas. Os avanços tecnológicos desse desenvolvimento é que devem promover a redução sonora, de uma ou outra maneira. Muitas soluções estão caminhando nessa direção. Se admitirmos que não existe silêncio no planeta porque existe som e ruído em volta o tempo todo, o problema vai para a tecnologia, no sentido de reduzir a emissão sonora nas fontes, como veículos e máquinas. Na União Europeia, uma das maneiras de regulamentar a emissão para veículos e aparelhos domésticos silenciosos leva em conta essa separação entre crescimento econômico e redução de ruído. Esse investimento em fontes com baixa emissão de ruído me parece uma linha importante a ser seguida. O tráfego mais calmo nas estradas e veículos elétricos apontam esse rumo tanto para as indústrias como para a sociedade. Para aparelhos, tudo indica que o conceito de selos, que começou com o consumo de energia, pode ser aplicado à acústica e à certificação de produtos domésticos. Não estou dizendo que esse sistema seja perfeito, mas é um conceito que o mercado entende. Mesmo quando se fala com quem não tem conhecimento técnico, a pessoa entende o que um produto A, B, C, D ou E significa, da mesma forma como entendia o que significava com relação ao consumo de energia. Isso simplifica as coisas da mesma maneira como as pessoas avaliam hotéis e restaurantes nas redes sociais. Esse tipo de ranking é fácil de entender e esse me parece um bom ponto para começar.

Depois de vinte anos, desde a implementação das diretivas europeias de ruído ambiental, como avaliar o que foi positivo e o que precisa melhorar nas políticas de redução. Esse tipo de regulamentação pode ser aplicado em países em desenvolvimento?

Essa foi uma “grande” pergunta. Não tinha me tocado que havia passado tanto tempo (risos). A publicação da Diretiva de Ruídos Ambientais em 2002 representa um marco histórico e colocou a União Europeia num nível alto de diretrizes e numa reação em cascata em níveis nacionais. A comissão europeia ou o parlamento publicam as leis e os parlamentos nacionais e outras instâncias locais implementam as regras. Tudo muito de cima para baixo. Claro, países e membros têm que adotar e cumprir. Mas nem tudo foi perfeito. Como os níveis de legislação estão muito altos nem sempre as implementações alcançaram os níveis de praticabilidade imaginados. Isso foi bom para trazer os agentes para à discussão, mas exigiu muito trabalho para tornar a coisa aplicável em diferentes países membros da união. O que deu errado? Acho que, devido a esse mecanismo de publicação e implementação, nem todo o país reagiu com a mesma velocidade na hora de traduzir o que foi decidido em leis nacionais. Essa seria a primeira coisa. A outra dificuldade foi a metodologia de cálculo. Uma das diretrizes exigia que os países identificassem as aglomerações urbanas que precisavam de mapeamento, depois ter o cuidado de testar e apontar as pessoas impactadas e os planos de ação, mais as revisões a cada cinco anos. Acho que, agora, estamos nos períodos que vão de 2018 a 2023 na Inglaterra. Os mapas de ruído são ótimos e os níveis de pressão sonora nas aglomerações urbanas estão identificados, mas a dificuldade é encontrar consenso quanto aos métodos de cálculos. Os métodos de cálculo eram diferentes e não permitem comparações. Acho que o método CNOSSOS agora é obrigatório, desde que a versão final foi publicada há alguns anos e, na próxima rodada, talvez a metodologia de cálculo possa ser unificada e harmonizada. Isso é uma coisa que ainda vai exigir algum tempo para os ajustes. Sem métodos harmonizados, estaremos comparando maçãs com batatas, de uma certa forma. O outro aspecto diz respeito ao conceito de áreas silenciosas para identificar e proteger. A norma de procedimento aqui é muito vaga e generalizante. O documento diz o seguinte: áreas silenciosas são importantes e os membros devem identificar e proteger esses bolsões, mas sem apontar um critério. É como se o documento delegasse ao membro decidir qual ou quais critérios seriam adotados para identificar e proteger as áreas silenciosas. Isso cria incompatibilidades e diferentes mensagens e modelos. Ao longo de distintos andamentos e marcos históricos nesses anos todos, a comissão europeia ou as agências de meio ambiente da Europa tiveram que publicar relatórios técnicos de acompanhamento para tornar os critérios mais específicos. Houve, por exemplo, um relatório publicado em 2014 (denominado “Melhores práticas em identificação e gerenciamento de áreas silenciosas”), em que foram examinadas situações dos últimos anos e que revisa ações adotadas pelos membros desde 2002. A ideia era colocar algumas lições que poderiam trazer ensinamentos no gerenciamento de áreas silenciosas. Esse foi um documento importante. Depois teve outro de 2016 sobre áreas silenciosas no âmbito da comissão europeia de meio ambiente propondo novas métricas, adotadas a partir de então. Se todos passarem a usar essa métrica, então, no final da linha, poderemos ter resultados comparáveis. Sobre o futuro, acho que essa é a parte crucial em termos de medição e modelagem para fins de design, não só em termos de propagação, mas como percepção do ambiente sonoro. Daí a importância da padronização para a pesquisa acadêmica que deve seguir a mesma direção na hora de investigar aspectos sonoros com uma medição consensual.

No complexo ambiente urbano pode parecer difícil implementar medidas de redução de ruído e, no mesmo contexto, criar sons agradáveis e enriquecedores. Na sua experiência, como conectar essas diferentes áreas no planejamento estratégico das cidades?

Quando trago o tema do soundscape, precisamos admitir que o uso do ruído apresenta dificuldades técnicas nem sempre de baixo custo. Na União Europeia predomina a abordagem reativa. Nós planejamos, nós desenhamos, mas quando chega ao final da obra, concluímos que existe um problema. Então, temos que voltar e resolver o problema. Isso é a abordagem reativa aos problemas de ruídos. Daí a ideia proativa de inserir os problemas logo no começo do planejamento. Algumas estimativas preveem que 70% da população estará vivendo nas cidades por volta do ano 2050. Com esse nível de adensamento, claro, haverá um “acréscimo” de ruído e não podemos ficar esperando isso acontecer. Precisamos planejar a separação de funções, identificar diferentes necessidades acústicas em várias áreas com expectativas diversas. A quietude é desejável, mas não pode ser um parâmetro métrico para todas as cidades. O silêncio é necessário em locais como parques, mas não podemos imaginar que será em toda a cidade. Em Malmo, uma grande cidade sueca, para dar um exemplo, foi criada uma zona cultural sonora. Identificou-se e definiu-se um ambiente sonoro vibrante na cidade que reflete as atividades culturais, performances que a vizinhança considera interessante. Isso significa que a comunidade considera o ambiente sonoro como relaxante e, nesse caso, não seriam aplicáveis medidas de redução de ruído. Imagino que essa seria uma forma de reconfiguração mental para abordar o planejamento urbano. Podemos adotar esse conceito de que o som da cidade é diverso e que não podemos implantar o silêncio em todos os lugares.

Já tivemos duas conferências mundiais sobre planejamento sonoro urbano com bons exemplos de aplicações reais de novas abordagens. Você poderia dar alguns exemplos?

Essa é o tipo de pergunta que os participantes de eventos sempre fazem: “OK, mostre as evidências”. De novo, temos muitos exemplos de efeitos sonoros negativos para mostrar, mas existem, claro, os casos positivos de integrações holísticas do planejamento sonoro urbano. Nós começamos um trabalho chamado catálogo de intervenções sonoras no ambiente sonoro. Existem inúmeros exemplos na literatura especializada, na Inglaterra, na Alemanha e em outras regiões do mundo. Mas esse catálogo foi garimpado para mostrar histórias de sucesso de planejamento sonoro urbano e soundscape design em termos de ganhos para a comunidade, no desenho e na criação de espaços públicos. A ideia é organizar uma base de dados com propostas para começar a produção de um manual de casos que deram certo em diferentes contextos. Uma ferramenta para uso de designers e profissionais. Esse catálogo (Catalogue of Soundscape Interventions) será anunciado no próximo InterNoise, que acontecerá no fim de agosto em Glasgow, Escócia. Ainda são poucos os casos, mas, em pouco tempo, poderemos ter mais exemplos para incluir no catálogo, inclusive, se tiver, casos brasileiros ou latino-americanos.

Na sua opinião, os impactos da poluição sonora na fauna, flora ou nos oceanos podem se conectar com as políticas usadas para gerenciar os sons das cidades?

Não tem dúvida; tudo está conectado. Tudo o que acontece nas cidades afeta os diferentes ecossistemas. Uma das limitações na abordagem do controle de ruídos é a de que nós pensamos o problema de uma forma isolada. E a ideia é termos a capacidade de atrair mais pessoas que queiram se engajar nesses tópicos. Mais ainda: termos mais capacidade de apontar os problemas. Poderíamos começar integrando melhor as questões ambientais. Se fizermos alguma coisa para minimizar a poluição do ar, existirá uma possibilidade grande de que isso terá um impacto na poluição sonora. Mas voltando à sua primeira pergunta sobre como envolver políticos: se a gente tentar “vender” a ideia separada de poluição sonora é provável que eles não serão receptivos. Mas se apresentarmos o ruído como um componente de uma abordagem mais ampla como uma preocupação ambiental que traria benefícios acoplados, isso faria a diferença. Essa seria uma maneira de pensar o ruído: como parte de um complexo ambiental. Claro, se criarmos mais áreas silenciosas, parques, áreas verdes e restauradas para as pessoas, vamos atrair mais biodiversidade e a volta de espécies que abandonaram as cidades. Isso afetaria o ecossistema como um todo. Estou tentando evitar a palavra “holística”, mas essa seria a melhor maneira de descrever esse processo. Podemos sair da abordagem unificada que só enxerga o ruído e atrair outros profissionais que atuam em outros domínios.

Relatório ONU | United Nations Environment Programme
Fronteiras 2022 |
Barulho, Chamas e Descompasso
Autoria |
PNUMA
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