Barulho que adoece: o alerta das cidades brasileiras contra a poluição sonora
Um consenso entre os paulistanos é a ausência de um órgão público responsável por formular, e aplicar políticas eficazes de combate à poluição sonora Moradores da Avenida Paulista e vizinhos do Allianz Parque, do Instituto Butantã e do bairro Bom Retiro enfrentam diferentes tipos de ruído, conforme a dinâmica urbana de cada região.
A luta contra a poluição sonora no Brasil, especialmente em grandes centros urbanos como São Paulo, tem ganhado destaque no noticiário. Moradores de regiões barulhentas da cidade se organizaram em cinco frentes para pressionar os órgãos municipais por soluções contra essa chaga que corrói a saúde. A percepção sobre os impactos do ruído ambiental tem se intensificado à medida que os cidadãos enfrentam consequências significativas na saúde física e mental. Problemas auditivos, distúrbios do sono, complicações cardiovasculares, prejuízos na saúde mental e déficits cognitivos estão entre os principais resultados negativos apontados por especialistas.

A otorrinolaringologista Dra. Tanit Ganz Sanchez, Livre-Docente pela USP e diretora do Instituto Ganz Sanchez, explica que o ruído excessivo lesa as células sensoriais da cóclea – estrutura do ouvido interno responsável pela audição. Essas células, extremamente delicadas, podem sofrer danos irreversíveis quando expostas a sons intensos ou prolongados. “O excesso de energia sonora gera um estresse metabólico que leva à degeneração ou morte dessas células. Como elas não se regeneram, a perda auditiva costuma ser permanente”, afirma Sanchez.
Além disso, o ruído pode afetar áreas cerebrais responsáveis pelo processamento sonoro, comprometendo a compreensão da fala, mesmo em pessoas com audição aparentemente preservada na audiometria.
Ruído e doenças cardiovasculares

O advogado Waldir de Arruda Miranda Carneiro, especialista em direito imobiliário e autor do livro Perturbações Sonoras nas Edificações Urbanas, é e um dos líderes do movimento “Paulista boa para todos”. Morador da Avenida Paulista, ele relata que o ruído crônico está diretamente ligado ao aumento de doenças cardiovasculares.
“A exposição contínua ao barulho ativa o eixo do estresse, elevando os níveis de cortisol e adrenalina. Com o tempo, isso aumenta a pressão arterial, favorece processos inflamatórios e prejudica o sistema cardiovascular”, explica Miranda Carneiro.
Pesquisas como as do WHO-Community Noise Guidelines e da literatura médica mais recente sobre ruído comunitário associam níveis acima de 55 dB – especialmente à noite – ao aumento da incidência de hipertensão, arritmias e infartos.
Outro aspecto negativo gerado pela poluição sonora atinge em cheio a qualidade do sono, causando fragmentação do descanso e insônia. De acordo com Teddy Yanagiya, mestre em acústica arquitetônica pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo – USP, “mesmo que você não acorde, o barulho mantém seu corpo em alerta, elevando hormônios de estresse como o cortisol e impedindo o relaxamento profundo necessário para um sono reparador. A Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta que ruídos acima de 45 dB podem causar distúrbios sérios”, alerta Yanagiya.
A maioria dos especialistas são contundentes ao afirmar que as consequências de noites mal dormidas são sérias e se espalham por todo o organismo. Fisicamente, aumenta o risco de problemas cardiovasculares como pressão alta e infarto, além de enfraquecer o sistema imunológico e desregular o metabolismo, podendo levar ao ganho de peso e maior risco de diabetes.
Profissões em risco

Diversas profissões estão expostas a níveis perigosos de ruído, ressalta Sanchez. Entre os profissionais mais impactados estão operários da construção civil e da indústria metalúrgica; motoristas de ônibus, caminhões e operadores de máquinas pesadas; músicos, técnicos de som e trabalhadores de casas noturnas; militares, policiais e trabalhadores de aeroportos; e profissionais da saúde que trabalham com equipamentos barulhentos.
“Os sintomas de dano auditivo por ruído costumam dar o primeiro sinal com a dificuldade para ouvir ou entender conversas, especialmente em ambientes ruidosos”, diz Sanchez. Além da perda auditiva, é comum surgir o zumbido no ouvido, uma percepção sonora sem fonte externa. Outros sintomas incluem hipersensibilidade a sons comuns (hiperacusia) e sensação de ouvido “tapado” ou abafado. “Infelizmente, muitas pessoas só percebem o problema quando o dano já está instalado. Por isso, é essencial estar atento a qualquer mudança na percepção auditiva e procurar um especialista”, ressalta a médica.
O ruído gera consequências danosas mentais e aos sistemas cognitivos, causando irritabilidade, ansiedade e até depressão. Afeta diretamente a concentração, a memória e a capacidade de tomar decisões, resultando em fadiga diurna e queda de produtividade. “Em resumo, o barulho excessivo não só dificulta o adormecer, mas sabota a profundidade do sono, impactando negativamente a saúde física e mental”, explica Yanagiya.
Miranda Carneiro destaca o que diz o neurocientista Matthew Walker, no livro “Por que Dormimos”. “O sono não é um luxo, mas uma necessidade biológica fundamental para o funcionamento saudável do corpo e da mente. A privação ou fragmentação do sono compromete processos cruciais como a consolidação da memória, a regulação emocional e a restauração do sistema imunológico. Em nível prático, isso se traduz no aumento do risco de distúrbios de humor, dificuldades de concentração, maior propensão a erros e acidentes, além de queda acentuada na produtividade profissional e acadêmica.
A principal forma de proteção é evitar ou reduzir a exposição a sons intensos. Algumas estratégias incluem usar protetores auriculares adequados em ambientes ruidosos (espuma, concha ou moldados); redução do volume e tempo de fones de ouvido; realizar pausas sonoras em ambientes barulhentos; promover melhorias no isolamento acústico de ambientes de trabalho e lazer; participar de programas de conservação auditiva em empresas; realizar audiometrias periódicas. Como costumamos dizer, “prevenir sempre será mais eficaz do que remediar”, conclui Sanchez.
Planejamento urbano a favor da saúde
A criação de áreas silenciosas – como parques, praças e zonas exclusivas para pedestres – está entre as estratégias mais eficazes para o controle do ruído desde as fases iniciais do planejamento urbano. Esses espaços funcionam como verdadeiros refúgios acústicos em meio ao barulho cotidiano. Segundo Yanagiya, “essas áreas, quando bem projetadas, podem apresentar níveis de ruído entre 30 e 45 dB enquanto o entorno urbano pode estar acima de 65 dB”. Ou seja, representam um alívio acústico significativo.
Outra medida importante é o distanciamento entre zonas residenciais e as principais fontes de ruído, como avenidas movimentadas, linhas de trem, aeroportos ou áreas industriais. Essa separação física, especialmente quando aliada ao uso de barreiras vegetais ou edificações como escudos acústicos, pode contribuir com reduções entre 5 e 10 dB.
O zoneamento acústico permite definir limites de ruído específicos para diferentes regiões e atividades da cidade. “Quando bem aplicado, esse tipo de gestão pode estimular mudanças de uso e horários de funcionamento, com potencial de reduzir em até 3 a 5 dB os níveis médios em áreas críticas”, detalha Yanagiya.
A promoção de meios de transporte menos ruidosos, como ciclovias, calçadas acessíveis e corredores de ônibus com veículos silenciosos, são estratégias valiosas. Segundo Yanagiya, a substituição de parte do tráfego motorizado por bicicletas ou caminhadas tem um efeito indireto, mas cumulativo, e pode transformar áreas inteiras em zonas mais silenciosas.


Especialistas da ProAcústica apontam que os sistemas de isolamento acústico das fachadas dos edifícios, com vidros duplos e caixilhos bem vedados podem proporcionar atenuações entre 25 e 35 dB, dependendo da espessura do vidro e da qualidade da vedação. Materiais aplicados em paredes internas, como mantas acústicas ou painéis absorventes, também contribuem para o conforto dentro dos edifícios, principalmente em locais com alta densidade de pessoas, como hospitais, escolas e escritórios.
Monitoramento sonoro em tempo real
“A instalação de barreiras físicas ao longo de avenidas, como na Av. Paulista, poderia reduzir significativamente o som que chega aos edifícios”, sugere Miranda Carneiro. Segundo ele, a mobilidade elétrica, ao reduzir drasticamente o ruído de trânsito, é uma das maiores promessas para cidades mais saudáveis. Tecnologias de monitoramento sonoro em tempo real, como as usadas em Nova York, e nas obras de construção civil em Tóquio permitem gestão inteligente do ruído.
Yanagiya relata que desenvolveu uma dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo (USP), intitulada “Métodos para redução do ruído urbano nas cidades brasileiras”, na qual analisou a viabilidade de diferentes estratégias de controle de ruído adotadas ao redor do mundo. “O estudo mostrou que é possível adotar soluções eficazes e economicamente viáveis. Essas medidas não apenas são compatíveis com o desenvolvimento urbano, como também tornam as cidades mais saudáveis, resilientes e atrativas do ponto de vista social e econômico”.


Mapa de Ruído Urbano Dia e Noite: Projeto Piloto SP (https://www.proacustica.org.br/iniciativas/mapa-de-ruido/)
Legislação pela saúde
Políticas públicas e leis existem em algumas cidades para controlar o ruído. Há diversas normas municipais que desempenham papel relevante no enfrentamento das perturbações sonoras em todas as unidades da federação, especialmente no âmbito do chamado “interesse local”, conforme prevê o artigo 30, inciso I, da Constituição Federal.
Entretanto, ressalta Miranda Carneiro, quando se fala em proteção jurídica ampla contra o ruído excessivo, destacam-se as normas federais, que conferem respaldo jurídico uniforme em todo o território nacional. “Entre elas, merece destaque o artigo 1.277 do Código Civil (Lei nº 10.406/2002), que assegura ao proprietário ou possuidor de imóvel o direito de exigir que o vizinho cesse interferências prejudiciais, como barulho excessivo”, pontua o advogado.
No campo penal, o artigo 42 da Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941) tipifica como infração a perturbação do sossego alheio, seja por gritaria, algazarra, uso abusivo de instrumentos sonoros entre outros casos. Além disso, a Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998), em seu artigo 54, criminaliza a poluição (inclusive a sonora) que possa resultar em danos à saúde humana ou cause mortandade de animais ou destruição significativa da flora.